quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Grindhouse

Death Proof



Tarantino não é à prova de crítica…
A originalidade está cara. Pelo menos, assim se deduz de ver títulos como “Death Proof”, “Sunshine” ou “The Good German”; mais do que filmes por mérito próprio, definem-se como homenagens a géneros defuntos ou comatosos, fazendo referência aos seus diversos tiques, códigos e clichés. “Death Proof” é, antes de mais, uma carta de amor aos filmes “chunga”, à série “z” e aos clássicos da “Grindhouse” (salas de cinema que passavam filmes atrás de filmes de qualidade duvidosa). Tarantino é conhecido fã dessas salas e isso nota-se: quase todos os momentos do filme têm alguma referência velada a um clássico de culto tão obscuro que ninguém menos Quentin viu. Para que o efeito seja perfeito, e o público entre em modo “chunga” rapidamente, o filme apresenta saltos na imagem, grão e aqueles riscos provocados pelo mau uso da fita, que insistentemente atravessam a imagem. E logo nesse aspecto Tarantino é infeliz, pois ao invés de assumir esses “efeitos especiais” como parte da estética do filme, usa-os como um “gag” recorrente, escolhendo exactamente o quando e como da sua aparição, relembrando desnecessariamente o público de que está perante um “faux-grindhouse” ao invés de um genuíno. Dá mesmo a ideia que certas cenas são boas demais para levarem um risco em cima… Se o conceito por detrás de “Death Proof” era mesmo homenagear o género, teria sido mais consistente adoptar, de lés a lés, os seus preceitos. Por exemplo, em “The Good German”, Sodderbergh assume esse risco, transformando a sua paixão pelo “noir” num verdadeiro “statement” artístico, coerente desde o estilo de realização ao tipo de fita usada. Mas tal não é o caso, e “Death Proof” acaba por ser um filme de Tarantino subtilmente mascarado de “Grindhouse feature”, ao invés do contrário.

A história por detrás do filme é, como manda a regra, do mais simples, idiota e inverosímil possível: um ex-duplo com tara por automóveis diverte-se a matar mulheres com o seu carro “à prova de morte”. Isto, até o dia em que apanha pela frente algumas babes com atitude que decidem vingar-se. Embora possa soar ridículo, não seria novidade nenhuma se Tarantino, com a sua irreverência habitual, transformasse esta sinopse num excelente filme de acção. E, na maior parte do filme, ele consegue-o de novo, apoiando-se no seu virtuosismo técnico para transformar as perseguições de automóveis em verdadeiros orgasmos para os amantes da velocidade, e fazendo uso à sua habilidade inconfundível para transformar qualquer diálogo numa peça de humor corrosivo sobre sexo. Assuma-se a verdade, ninguém faz “entertainment” como Tarantino. Ninguém. “Death Proof” é mordaz, cínico, obsceno, sangrento e profundamente divertido. Mas o problema é que é tão profundamente divertido, como é profundamente oco. Se há filme em que se nota o vazio que paira no cérebro do seu autor é este: a cabeça de Tarantino deve ter chegou ao seu limite. É como se o seu aspirador de referências cinematográficas aspirasse tudo, mas esquecesse o mais importante, a essência dos géneros, a moralidade do conto, o intuito por detrás do sub-texto e a alma das suas personagens. Não há personagens dignas desse nome em “Death Proof”, nem mesmo um Bill ou uma noiva, que embora possuíssem caracteres simples eram marcadas por dualidades e angústias. Em Death Proof, há apenas um psicopata obcecado pela velocidade e por mulheres (excelente Kurt Russel, dono de uma perversidade inigualável), umas raparigas inocentes e ingénuas que são mortas por ele, e um conjunto de freiras puritanas, que ao serem atacadas são transformadas em ninfomaníacas doidas por vingança.

“Death Proof” é pobre. Paupérrimo mesmo, quando comparado com outras obras de Tarantino: longe vão os tempos da inovação de Reservoir Dogs ou Pulp Fiction (cuja montagem desfragmentada mudou Hollywood), ou da ousadia “Rashomonesca” de Jackie Brown… até Kill Bill parece uma memória distante: o seu virtuosismo artístico e mescla de géneros vão muito além deste pastiche bem apresentado que Tarantino agora traz. Não fosse a irreverência de alguns diálogos e a cuidada execução técnica, e “Death Proof” poderia ser facilmente confundido com uma obra de entretenimento banal. E esse é o grande perigo que se apresenta perante um dos grandes cineastas de uma geração, tornar-se num mero gerador de “blockbusters” hiper-violentos e amorais, ausentes de qualquer arte, cultura ou pior ainda, Cinema.

Por Rui Craveirinha

Sem comentários: